Imagem de Nossa Senhora de Guadalupe:
um genuíno amoxtli ou código asteca.
Pe. Javier García, L.C.
A imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, venerada na Basílica do Tepeyac, na Cidade do México, é conhecida hoje em toda a Igreja Católica. Depois que João Paulo II canonizou o vidente, o índio Juan Diego Cuauhtlatoatzin, no dia 31 de julho de 2002, muito tem sido comentado sobre a história das aparições ocorridas em 1531.
A nossa intenção é fazer uma “leitura” da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, pintada no manto do índio. Leitura quase igual ao exercício de ler um livro, pois a pintura de Nossa Senhora de Guadalupe foi feita conforme as técnicas e o modo dos códigos astecas, cuja primeira regra não é a figuração e sim o significado.
Hoje, na América Latina, está acontecendo uma teologia indígena ou reflexão do Evangelho com categorias culturais indígenas. Cinco séculos atrás, Nossa Senhora já quis nos deixar, na colina do Tepeyac, um código que sintetiza a teologia indígena.
1. O que é um amoxtli.
Antropólogos, historiadores e estudiosos do náuatle reconhecem que a imagem pintada no manto de Juan Diego é um amoxtli, ou seja, um “código indígena”, como os códigos que eles usavam para registrar as suas crônicas políticas ou os seus saberes cos-mogônicos e teogônicos. Trata-se de pele de veado ou de papel amate, feito de sisal ou de polpa vegetal, pregado como se se tratasse de pequenos biombos, com madeira nas extremidades. Eles escreviam, sobre gesso ou outra pintura branca, de acordo com sua própria “gramática”. São assim o “Código Vaticano”, o “Código Selden”, o “Código Nutall”, o “Código Dresden”.
No código, usa-se a imagem não como um simples “retrato da realidade”, mas como uma idéia ou grupo de idéias. Os astecas e os maias escreviam com hieróglifos cujo significado era conhecido por todos, ou pelo menos pela classe culta, sacerdotal e política: parte era escrita em pictogramas que representavam sinteticamente as coisas reais; parte era composta por sinais de um incipiente alfabeto. A estes elementos gráficos e fonéticos se acrescentavam as cores, cada uma com significado próprio, os símbolos dos deuses, cidades e reis, e as cifras numerais para situar o relato no tempo. Da combinação destes diversos elementos nasce a “gramática” com a qual eles se expressavam nos seus códigos. O conjunto era um texto legível, completado pelas tradições orais transmitidas segundo cânones fixos por processos mnemotécnicos bem precisos, que as crianças aprendiam desde o calmecac, ou seja, a escola. Desta forma, era conservada a memória dos reis, povos e ações épicas dos deuses.
A língua era polisintética: podia expressar diversas idéias com as mesmas palavras, acrescentando-se prefixos ou sufixos. Analogamente, uma só imagem acumulava diversos significados. Por exemplo, a palavra tetlaceliliztli traduz o conceito de sacramento, mas a sua composição acrescenta outros matizes: temos o verbo celilia que significa receber ou perdoar; o prefixo te, que indica pessoa, e o prefixo tla que indica coisas ou objetos; assim Tetlaceliliztil pode ser traduzido como “recepção de algo que é também alguém”.
Um código não é lido, mas interpretado, traduzido, por meio da comunicação de uma cultura diferente. Era preciso memorizar as palavras dos autores. Nossa Senhora escolheu um “código” para a sua mensagem, adaptando-se assim à mentalidade e à cultura asteca. Miguel Cabrera, o pintor novo-hispano, escreveu em 1756: “O fato de Nossa Senhora ter deixado esta milagrosa memória, este belíssimo retrato, parece ter sido para se adaptar ao estilo ou à linguagem dos índios; como sabemos, eles não conheciam outra forma de escrita além das expressões simbólicas ou hieróglifos pintados(1)”.
Ometeotl, deus, quando se transformou em tlacuilo ou escriba, soube criar uma obra de mestre. Trata-se de um “evangelho pictórico”: “proclama a Boa Nova de Cristo a partir da ‘antiga regra de vida’ de seus antepassados, sem mudá-la, e dando a mesma plenitude(2)”.
2. Descrição da imagem por Fernando de Alva Ixtilxóchtil
Fernando de Alva Ixtilxóchtil, mestiço, quase espanhol, mas com toda a sensibilidade indígena, complementou o Nican Mopohua com a descrição minuciosa da imagem de Nossa Senhora do Céu, mediante a qual os seus antepassados índios puderam reviver em carne e osso uma parte da experiência de Juan Diego:
“O manto em que a imagem da Senhora do Céu apareceu milagrosamente era o casaco de Juan Diego: era um pouco duro e bem costurado. Naquele tempo, a roupa e o casaco de todos os pobres índios era assim; somente os nobres, os principais e valentes guerreiros é que se vestiam com um manto branco de algodão. Aquele manto, como sabemos, é feito de ichtli, que vem do agave. O manto no qual a sempre Virgem Nossa Rainha apareceu é composto de duas peças, pregadas e costuradas com fio macio”.
“Seu lindo rosto é muito grave e nobre, um pouco moreno. Seu precioso busto aparece humilde: suas mãos estão juntas sobre o peito. Seu cinto é roxo. Só aparece uma pontinha do seu pé direito, cujo sapato é de cor cinza. Sua roupa é rosada e, na sombra, parece avermelhada; é bordada com diferentes flores, todas de contorno dourado. No pescoço aparece um broche dourado, com faixas negras nas bordas, e, no meio, uma cruz. Aparece também um vestido branco interior bem justo nos pulsos e com as extremidades desfiadas”.
“Seu véu é azul-celeste por fora; está bem acomodado na cabeça; não lhe cobre o rosto e cai até os pés, um pouco apertado na cintura; tem uma franja dourada algo larga, e 46 estrelas de ouro por toda a parte. Sua cabeça está inclinada para a direita; acima do seu véu, uma coroa de ouro. Sob os pés, a lua, com duas pontas; exatamente no meio das pontas aparece o sol, cujos raios a seguem e rodeiam por todos os lados. São cem raios, alguns muito longos, outros pequeninos, com figuras de chamas: 12 circundam o seu rosto e a sua cabeça, e, de cada lado, saem 50. Por fim, uma nuvem branca a rodeia”.
“Esta prestigiosa imagem está sobre um anjo pintado até a cintura, cujos pés não aparecem, porque está dentro da nuvem onde também acabam as extremidades da roupa e do véu da Senhora do Céu, sustentados pela mão do anjo, cuja roupa é avermelhada, de colarinho dourado, e cujas asas, com amplas e longas penas, são verdes e de outras cores. O anjo a leva pela mão, e parece estar muito feliz por conduzir assim a Rainha do Céu(3)”.
3. O rosto
O rosto é de uma jovem, recém-saída da adolescência, nem índia nem espanhola, mestiça. De rosto mexicano, ou melhor, hispano-americano. Neste período histórico ainda não existiam meninas hispano-americanas desta idade, e nem os índios nem os espanhóis aceitavam o fruto de sua união; desprezavam-nas - eram, na verdade, os primeiros mexicanos e hispano-americanos -, e este foi o estereótipo biológico que a Mãe de Ometeotl adotou para manifestar a sua missão e função: “...darei todo o meu amor... porque, de verdade, eu sou vossa Mãe compassiva, tua e de todos os que nesta terra estão e das outras estirpes de homens, que me amam... ” (vv. 28-31).
Um rosto em que cada um dos progenitores, o espanhol e a índia, ou vice-versa, podem reconhecer, com orgulho, um terceiro rosto, com perfil próprio e original, nem espanhol nem índio, um outro rosto, síntese do velho mundo -semítico, ibérico, romano, godo e africano- e do novo mundo, índio-americano, fortemente ligado à Ásia e à África.
Eu vi, recentemente, um casal de jovens mexicanos visitando a Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe:
- “Olha o rosto dela”, dizia o jovem à namorada, “é como o teu e como o meu”. E ficavam extasiados olhando para ela.
Esta é a grande obra de Tenontzin Guadalupe, a Mãe de todos, no México e em toda a América. É o grau supremo de inculturação, a sábia lei já enunciada por São Paulo: “Eu me fiz servo de todos para ganhar o maior número possível. Para os judeus me fiz judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão debaixo da lei, me fiz como se eu estivesse de baixo da lei. Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar a todos”. (I Cor 9, 19-23). Nossa Senhora de Guadalupe se fez índia como a índia e como o índio, para levá-los a Cristo. Por isso, os bispos da América latina, em Puebla, escreveram uma página memorável:
“O Evangelho, encarnado nos nossos povos, nos congregam numa originalidade histórica cultural que chamamos América Latina. Esta identidade se simboliza muito luminosamente no rosto mestiço de Nossa Senhora de Guadalupe, que se ergue no início da evangelização” (nº446).
Na imagem, há também “jade e pluma preciosa” (in Chalchiutl in Quetzalli), símbolo de beleza e de riqueza para os índios. O jade do pequeno broche que Maria traz no peito, como as estátuas dos deuses, representa a sua própria alma. É uma cruz, na qual se repete a síntese da cruz cristã e da cruz indígena. Há também plumas de ave preciosa nas asas do anjo que conduz Maria, pluma preciosa de Quetzal, chamada pelos astecas de “sombra de Deus”.
4. A túnica.
A túnica “rosada ou avermelhada” evoca a aurora ou o entardecer; é a cor de Tonatiuh e de Yestlaquenqui, nomes diversos do deus sol. Tem o desenho do sinal ollin (origem da vida do universo), uma pequena flor de quatro pétalas, como um jasmim, que indicam os quatro rumos do mundo, e o de um grande botão de flor parcialmente aberto sobre um grosso talo, todo barrocamente estilizado. É o símbolo do monte Tepeyac; significa “no nariz do monte”, que durante certas épocas do ano se enchia de flores silvestres. É como se fosse uma lembrança da tradição de “flor e canto”, tão querida para o povo indígena.
5. O cinto escuro.
O cinto escuro representa o cinto de Coatlicue, cuja cor era o preto: Tecolliquenqui, “aquela que está vestida de negro”, outro nome de Ometeotl. O cinto escuro era o sinal com que as mulheres astecas indicavam seu estado “de boa esperança”. Podemos deduzir que Nossa Senhora de Guadalupe está representada como Virgem Mãe, não com o filho nos braços, mas no ventre; é um filho que vai nascer. É a imagem da mulher do Apocalipse 12, 1-4, vestida de sol e a ponto de dar à luz.
6. O manto azul
O manto azul, cheio de estrelas, é a xiuhtilmatli ou tilma de turquesa, própria dos mais altos tlatoanime, ou seja, nobres e príncipes, e do deus Huiltzilopochtli, porque o Huilhuícatl xoxouhqui, ou seja, “céu azul”, era o sétimo dos treze céus, onde ele morava, e era o nome de seu templo no Tenochtitlan.
7. As estrelas
As estrelas que no manto brilhavam traziam para a mente indígena a lembrança de Citlalinícue, “a deusa da saia de estrelas”, outro nome de Ometeotl num toque mais maternal.
8. O céu azul escuro
O céu azul estrelado é o céu noturno, a associação de Yiohualli Ehecatl, ou “noite vento”, isto é, “o invisível, o impalpável”, outro dos nomes de Ometeotl, que, na linguagem filosófica, chamaríamos de transcendência: aquilo que não pode ser visto nem tocado, porque fica além da realidade visível.
9. O resplendor do céu
Sobre o aspecto noturno se sobrepõe o diurno, pois a Senhora está vestida de sol, e, ainda mais, grávida do Sol, como podemos ver pelo ollin, a flor de quatro pétalas, pela colocação do cinto e pela intensidade dos resplendores que aumentam na cintura. Não é somente um sol astronômico, é uma aurora de um sol diferente, no momento de despontar: é o que significa Tonatiuh, “aquele que vai brilhando”, e Citlallatónac ou “astro que ilumina todas as coisas”. O sol é outro dos nomes de Ometeotl e seu símbolo.
10. O anjo
O anjo que sustenta a Senhora com os braços abertos é uma espécie de atlante indígena. Representa Cuauhtehuámitl, “águia que sobe”, e sustenta a Cihuapilli, que sai de uma nuvem. Suas asas são compostas de três cores, azul-esverdeado, branco-amarelado e vermelho. Também são cores sagradas. É um tipo de “serpente alada”, ou Quetzalcóatl, com postura de estátua tolteca, Tlahuizcalpentecutli, que quer dizer “senhor das estrelas da manhã”, outro dos nomes de Deus. Suas asas são pequenas, como um punhado de sacrifícios; são asas de águia: “A águia que sobe”, Cuauhtehuámitl, mais um nome de Huitzilpochtli, que sobe para ofertar a Senhora a Deus. Por outro lado, o anjo representaria a ordem dos guerreiros - águias e guerreiros - jaguares, os mais nobres da sociedade asteca.
11. As cores
O anjo, com a indumentária vermelha e com algumas asas também vermelhas, e Nossa Senhora, vestida de rosa, nos evocam a cor do sol quando nasce e morre. É a cor de Huitzilpochtli e de Yestlaquenqui, “aquele que está vestido de vermelho”, outro dos nomes de Deus. O branco e o vermelho das asas do anjo também falam de Tlatoc, o deus da água e de Xiutecutli, deus do fogo.
É admirável a sabedoria e audácia do misterioso tlacuio, ou pintor da imagem - seja Quem for -, ao colocar os principais deuses mexicanos como padrinhos da Mãe de Ometeotl! Isto nos faz lembrar São Paulo no areópago de Atenas, que, no seu discurso de evangelização, tem como ponto de partida a “profunda religiosidade” daquele povo (At 17, 22).
Para concluir, podemos dizer que o indígena que contemplava a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe podia deduzir da “leitura” de seu código guadalupano que a nobre Senhora trazia consigo tudo o que havia de bom na antiga religião e sabedoria indígena, e o levava a um nível novo e mais luminoso. Nossa Senhora de Guadalupe era a Mãe do Verdadeiríssimo Deus, que nos dá vida e nos torna filhos de Deus Pai.
Termimenos esta reflexão com alguns versos, escritos originariamente em náhuatl, de Francisco Plácido, senhor índio de Atzcapotzalco, compostos poucos anos depois das aparições, inspirando-se em formas de expressão pré-hispânicas e dedicado à Mãe de Deus:
“Eu me divertia com o conjunto policromado de várias flores de tonacaxóchtl que se espalhavam, inquietantes e milagrosas, que se abriam na tua presença, ó Mãe nossa, Santa Maria! ".
“Nas margens das águas cantava (Santa Maria): eu sou a planta preciosa de frescos botões; sou obra do único, do perfeito Deus; a melhor das suas criaturas”.
“Tua alma, ó Santa Maria, é como se estivesse viva na pintura. Nós, os senhores, te cantávamos atrás do grande livro e te bailávamos com perfeição(4)”.
Como se vê, nosso trabalho não passa de uma simples leitura. Queríamos mostrar o método. Temos certeza de que outros, com mais inteligência, nos oferecerão, quando lerem o código de Guadalupe, não somente simples leituras, mas cantos de harmonia inaudita.
Notas:
1. Miguel Cabrera, “Maravilha americana e conjunto de raras maravilhas observadas na direção da arte da pintura na prodigiosa Imagem de Nossa Senhora de Guadalupe do México, com licença no México da imprensa do real e mais antigo colégio de São Ildefonso, ano de 1756”, apud Ernesto da Torre Villar e Navarro de Anda, em “Testemunhos Históricos... Maravilha americana”, p.52.
2. José Luis Guerrero, “Flor e canto do nascimento do México”, Ed. Realidade, Teoria e Prática, Cuautitlán, Edo. do México, 2000, p.395.
3. Citado em J.L. Guerrero, em “Flor e canto do nascimento do México”, Ed. Realidade, Teoria e Prática, Cuautitlán, Edo. do México, 2000, pp. 386-387.
4. Atribuído a Francisco Plácido, Senhor de Atzcapotzalco, em Cuevas Mariano, “Álbum histórico guadalupano”, década 1a, p.21. Cfr. também Torre Villar Ernesto e Navarro de Anda Ramiro, “Testemunhos Históricos: o Pregão de Atabal”, p.23.
Dados do autor:
O Pe. Javier García, L.C. é catedrático de cristologia, no Ateneo Pontifício Regina Apostolorum de Roma, e consultor da Pontifícia Comissão para a América Latina.